Nov. 2015 - Carta aos Amigos e Benfeitores n° 85

Queridos Amigos e Benfeitores,

Estas últimas semanas nos mostram – com a multiplicação de atentados assassinos na Europa e na África, com a perseguição sangrenta de numerosos cristãos no Oriente Médio –, quão profundamente convulsionada está a situação do mundo. Na Igreja, o recente Sínodo sobre a família e a iminente abertura do Ano Santo não deixam de provocar legítimas inquietudes. Frente a tal confusão, cremos ser útil compartilhar nossas reflexões respondendo às suas perguntas. Consideramos que esta apresentação permitirá ressaltar o modo como nós, que somos devotos à Tradição, devemos reagir diante dos problemas planteados na atualidade.

Em 1° de setembro, o Papa Francisco deu a todos os fiéis, por própria iniciativa, a possibilidade de se confessarem com os padres da Fraternidade São Pio X durante o Ano Santo. Como o senhor interpreta esse gesto? Concede algo novo à Fraternidade?

Fomos surpreendidos por este ato do Santo Padre com ocasião do Ano Santo, porque o soubemos, como todo o mundo, pela imprensa. Como recebemos esse ato? Permitam-me utilizar uma imagem: quando um incêndio se agrava, todo o mundo entende que aqueles que têm os meios devem esforçar-se por apagá-lo, principalmente se houverem poucos bombeiros. Assim atuaram os padres da Fraternidade, durante todos os anos desta terrível crise que abala a Igreja há mais de 50 anos. Em particular, diante da trágica falta de confessores, nossos sacerdotes se entregaram ao serviço das almas dos penitentes, utilizando o caso de urgência previsto pelo Código de Direito Canônico.

O ato do Papa nos concede durante o Ano Santo uma jurisdição ordinária. Seguindo a metáfora, essa ação consiste em dar-nos a insígnia oficial de bombeiros, apesar de haverem-na negado por décadas. Em si, para a Fraternidade, seus membros e seus fiéis, isso não agrega nada novo; contudo essa jurisdição ordinária tranquilizará os que têm inquietudes e todas as pessoas que até agora não se atreviam a aproximar-se de nós. Porque, como dissemos no comunicado de agradecimento, os padres da Fraternidade só desejam uma coisa: “exercer com renovada generosidade seu ministério no confessionário, seguindo o exemplo de dedicação infatigável que o santo Cura d’Ars deu a todos os sacerdotes”.

Com ocasião do Sínodo sobre a família, o senhor dirigiu uma súplica ao Santo Padre e, depois, uma declaração. Por quê?

O objetivo de nossa súplica era expor ao Sumo Pontífice a gravidade do momento atual e o alcance decisivo de sua intervenção em matérias morais tão importantes. O Papa Francisco soube de nossa súplica em 18 de setembro, antes de sua partida para Cuba e Estados Unidos, e nos informou que não mudaria nada na doutrina católica do matrimônio, em particular no que se refere à indissolubilidade. Mas temíamos que, em concreto, fosse instaurada uma prática que desconsiderasse a indissolubilidade do vínculo matrimonial. Foi o que aconteceu, por uma parte com o Motu proprio da reforma do procedimento de declaração de nulidade matrimonial e por outra parte com o documento final do sínodo. Por esse motivo fiz a declaração, que busca recordar o ensinamento constante da Igreja sobre vários pontos que foram discutidos, e algumas vezes foram postos em dúvida, durante este mês de outubro. Não  lhes oculto que considero o triste espetáculo dado pelo Sínodo particularmente vergonhoso e escandaloso por vários motivos.

Quais são esses pontos vergonhosos e escandalosos?

Por exemplo, a dicotomia entre a doutrina e a moral, entre o ensino da verdade e a tolerância do pecado e das piores situações imorais. Deve-se ser paciente e misericordioso com os pecadores, é claro, mas como eles se converterão se não denunciamos sua situação de pecado, se não ouvirem falar do estado de graça e de seu contrário: o estado de pecado mortal, que submerge a alma na morte espiritual e a entrega aos tormentos do inferno? Se medíssimos a ofensa infinita que causa o menor pecado grave à honra de Deus e à sua santidade, morreríamos de assombro. A Igreja deve condenar o pecado com decisão, todos os pecados, vícios e erros que corrompem a verdade do Evangelho. Não deve pactuar ou mostrar uma culpável compreensão por comportamentos escandalosos, nem pelos pecadores públicos que atentam contra a santidade do matrimônio. Por que a Igreja não tem mais a coragem de falar assim?

Contudo houve iniciativas positivas com ocasião deste Sínodo. Por exemplo o livro dos onze cardeais – depois daquele dos cinco cardeais no ano passado –, e também a obra dos prelados africanos, a dos juristas católicos, o vademécum dos três bispos…

As iniciativas que apareceram recentemente defendendo o matrimônio e a família cristã nos dão uma luz de esperança. Há uma reação saudável, ainda que nem todas têm o mesmo valor. Esperemos que isto seja o começo de um despertar em toda a Igreja que conduza a uma recuperação e a uma conversão profunda.

Antes do verão, em um sermão em Saint Nicolas du Chardonnet, em Paris, Dom Alfonso de Galarreta disse que parecia que a Igreja começava a fabricar “anticorpos” contra as proposições aberrantes sobre o matrimônio realizadas pelos progressistas, que se acomodam aos costumes atuais em vez de tentar corrigi-los segundo o ensinamento evangélico. Essa reação no plano moral traz benefícios. E como a moral está intimamente unida à doutrina, isso poderia ser o começo de um retorno da Igreja à Tradição. Rezamos toso os dias por isso!

Se for impossível mudar a doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio, alguns, como o Cardeal Kasper, querem ao menos, em nome da misericórdia, suavizar a disciplina da Igreja sobre a comunhão dos “divorciados que voltaram a casar” ou modificar seu juízo sobre as uniões contra natura. Que devemos pensar sobre todas essas exceções chamadas “pastorais”?

A Igreja pode legislar, ou seja, estabelecer leis próprias, que são precisões da lei divina. Mas no âmbito do matrimônio sobre o qual se debate hoje Nosso Senhor já definiu a questão de maneira clara e evidente: “Não separe o homem o que Deus uniu” (Mat. 19, 6) e “aquele que desposa uma mulher rejeitada, comete também adultério” (Mat. 19, 9). Portanto, a Igreja deve recordar a lei divina e consagrá-la em suas leis eclesiásticas. Em nenhum caso, pode ser permitida uma discrepância; o que representaria uma falta contra sua missão, que consiste em transmitir o depósito revelado. Falando mais claramente, na questão que tratamos, a única coisa que a Igreja pode comprovar é se houve ou não, desde o começo, um verdadeiro matrimônio, mas não pode anular ou dissolver um matrimônio válido em si mesmo.

As leis eclesiásticas podem agregar condições necessárias para a validez de um matrimônio, mas sempre em conformidade com a lei divina. Deste modo, a Igreja pode declarar inválido um matrimonio por falta de forma canônica, mas nunca será dona da lei divina, à qual está sujeita. Ainda mais, deve-se afirmar que, de modo diferente ao da lei humana e eclesiástica, a lei divina não admite exceções, porque não foi feita por homens, os quais não podem prever todos os casos possíveis e estão obrigados a deixar uma margem para as exceções. Deus infinitamente sábio previu todas as situações, como escrevi na súplica ao Papa: “A lei de Deus, expressão do Seu amor eterno para com os homens, constitui em si mesma a suprema misericórdia para todos os tempos, todas as pessoas e todas as situações.”

O Motu proprio de 8 de setembro que simplifica o procedimento das declarações de nulidade matrimonial não é uma forma de oferecer facilidades canônicas para burlar o princípio de indissolubilidade do matrimônio, apesar de recordá-lo textualmente?

É verdade que o novo Motu proprio que regula as disposições canônicas relativas aos processos de nulidade pretende responder a um grave problema atual: o de muitas famílias despedaçadas por uma separação. Examinar esses casos para propor uma solução mais rápida, respeitando à lei divina do matrimônio, estaria bem. Mas no contexto atual da sociedade moderna, secularizada e hedonista, e dos tribunais eclesiásticos nos que já se pratica o que está proibido, este Motu proprio poderia facilmente converter-se em uma ratificação legal da desordem. O resultado poderia ser ainda pior que o remédio proposto. Temo que um dos pontos chave do Sínodo foi resolvido indireta e ocultamente, abrindo o caminho a um suposto “divórcio católico”, porque, existe a possibilidade de muitos abusos, especialmente nos países onde os episcopados são pouco exigentes e estão imbuídos de progressismo e subjetivismo…

O Ano Santo que será iniciado no próximo dia 8 dezembro não foi posto sob o signo de uma misericórdia na qual o arrependimento e a conversão estariam ausentes?

É verdade que no clima atual, o chamado à misericórdia predomina com muita facilidade sobre a indispensável conversão que deve acompanhá-la e que exige a contrição das próprias faltas e o horror pelo pecado, que é uma ofensa contra Deus. Como eu deplorava na última Carta aos amigos e benfeitores (n° 84), o Cardeal hondurenho Maradiaga complacentemente se torna porta-voz de uma nova espiritualidade na qual a misericórdia está truncada e tem amputada a necessária penitência, que quase nunca é relembrada.

Contudo, lendo com atenção os diferentes textos publicados sobre o Ano Santo, principalmente a bula de convocação do Jubileu, vemos que está presente a ideia fundamental da conversão e da contrição dos pecados para obter o perdão. Apesar da referência a uma misericórdia equívoca que consistiria mais em devolver ao homem sua “dignidade incomparável” que o estado de graça, o Papa quer favorecer o retorno dos que abandonaram a Igreja e multiplica as iniciativas concretas para facilitar o recurso ao sacramento da penitência. Infelizmente ele não se pergunta porque tantas pessoas abandonaram a Igreja e deixaram a prática religiosa nem se pergunta se não há uma relação com certo Concílio, seu “culto do homem” e suas reformas catastróficas: ecumenismo imoderado, liturgia dessacralizada e protestantizada, relaxamento da moral, etc.

Os fiéis devotos à Tradição podem, sem risco de confusão, participar do Jubileu extraordinário convocado pelo Papa? Principalmente porque este Ano da Misericórdia pretende celebrar o 50º aniversário do Concílio Vaticano II, que teria derrubado as “muralhas” nas quais a Igreja estava encerrada…

Evidentemente surge o problema de nossa participação neste Ano Santo. Para dar uma resposta, é necessária distinguir entre as circunstâncias nas quais é convocado um Ano Santo jubilar e a essência de um Ano Santo.

As circunstancias são históricas e estão vinculadas aos grandes aniversários da vida de Jesus, em particular à sua morte redentora. A cada 50 anos, ou inclusive 25, a Igreja institui um Ano Santo. Desta vez, o acontecimento de referência para a abertura do Jubileu não é somente a Redenção – o dia 8 de dezembro está necessariamente vinculado à obra redentora iniciada com a Imaculada Mãe de Deus –, mas também o Concílio Vaticano II. É chocante e algo que rejeitamos formalmente, porque não podemos alegrar-nos com esse aniversário, mas, ao contrário, devemos chorar sobre as ruínas ocasionadas por este Concílio, como a queda vertiginosa das vocações, a diminuição dramática da prática religiosa e principalmente a perda da fé, que o próprio João Paulo II qualificou de “apostasia silenciosa”.

De qualquer maneira, existem os elementos essenciais de um Ano Santo: é um ano particular em que a Igreja, segundo a decisão do Sumo Pontífice, que tem poder das chaves, abre seus tesouros de graças para aproximar os fiéis a Deus, especialmente por meio do perdão dos pecados e a remissão das penas devidas. A Igreja o faz por meio do sacramento da penitência e das indulgências. Essas graças não mudam. São sempre as mesmas e somente a Igreja, Corpo místico de Cristo, dispõe delas. Podemos ver também que as condições para obter as indulgências do Ano Santo seguem sendo as mesmas: confissão, comunhão e oração pelas intenções do Papa – as intenções tradicionais e não as intenções pessoais. Ao recordar estas condições habituais, não é feita referencia em nenhum lugar à uma adesão às novidades conciliares.

Quando Dom Lefebvre foi com todo o seminário de Ecône a Roma, com ocasião do Ano Santo de 1975, não foi para celebrar os 10 anos do Concílio, ainda que Paulo VI havia recordado este aniversário na bula de convocação. Foi, ao contrário, a ocasião para manifestar nossa romanidade, nosso apego à Santa Sé, ao Papa que – como sucessor de Pedro – tem o poder das chaves. Imitando nosso venerado fundador, durante este Ano Santo, nos concentraremos no que é essencial: a penitência para alcançar a misericórdia divina por intermédio de sua única Igreja, apesar das circunstâncias que promoveram sua convocação neste ano, como ocorreu em 1975 e inclusive em 2000.

Esses dois elementos, o essencial e as circunstâncias, ao conteúdo e ao envoltório que o traz. Seria errôneo rejeitar as graças dadas em um Ano Santo pelo fato de ser apresentado em um envoltório defeituoso, salvo que esse envoltório alterasse o conteúdo, que as circunstâncias absorvessem o essencial de tal modo que, no caso presente, a Igreja já não dispusesse das graças próprias do Ano Santo devido aos danos ocasionados pelo Concílio Vaticano II. Mas a Igreja não nasceu há 50 anos! Pela graça de Cristo, que é “o mesmo ontem, hoje e sempre” (Heb. 13, 8), a Igreja segue e seguirá sendo a mesma, apesar deste Concílio de abertura a um mundo em perpétua mudança…

Em várias declarações recentes parece que o senhor quer antecipar o centenário de Fátima, convidando as pessoas a prepararem-se desde já. Por quê?

Dadas as perspectivas que evocamos e para insistir sobre a urgência da conversão, pensamos em unir as obras de misericórdia corporal e espiritual, que são aconselhadas neste ano, com o centenário das aparições de Fátima, onde Nossa Senhora insistiu tanto sobre a necessidade da conversão, de si mesmo e do mundo, e na necessidade das obras de penitência e da oração, especialmente do rosário. Implorar a misericórdia divina está intimamente ligado às aparições de Fátima: a Santíssima Virgem nos convidou a rezar e a fazer penitência: assim alcançaremos misericórdia e não de outro modo. Considero muito conveniente unir assim os dois próximos anos, dedicando dois anos a esforçar-nos em aproximar-nos tanto à Santíssima Virgem como a Nosso Senhor, tanto ao Coração Imaculado de Maria como ao Sagrado Coração misericordioso.

A Fraternidade São Pio X organizará uma peregrinação internacional a Fátima entre os dias 21 e 23 de agosto de 2017. Mas desde agora podemos, e inclusive devemos, preparar-nos, principalmente em um momento em que é tão gravemente menoscabada a moral católica.

Mais do que nunca, neste dia 21 de novembro, que é um grande aniversário para nós, o da declaração de Dom Lefebvre em 1974 – verdadeira Carta Magna de nosso combate pela Igreja de sempre –, conservemos em toda circunstância, e diante de qualquer dificuldade ou prova, uma atitude católica. Tenhamos os pensamentos da Igreja, sejamos fiéis a Nosso Senhor, permaneçamos aferrados a seu Santo Sacrifício, a seus ensinamentos e a seus exemplos.

Lia ontem que o Cardeal Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, temia uma “protestantização da Igreja”. E tem razão. Mas não é a missa nova uma protestantização da missa de sempre? E que pensar sobre o Papa que, como seus predecessores, visita um templo luterano? Como não ficar confuso ao ver a preparação do 5º centenário da Reforma protestante, em 2017, e como é louvada agora a figura de Lutero, que foi um dos maiores heresiarcas e cismáticos da história, ferozmente oposto à Igreja católica e romana? Realmente Dom Lefebvre via com claridade quando afirmava que “a única atitude de fidelidade à Igreja e à doutrina católica, para nossa salvação, é rejeitar categoricamente a Reforma”, porque entre a reforma empreendida pelo Concílio Vaticano II e a de Lutero há mais de um ponto em comum. E seguindo-o, repetimos que “sem nenhuma rebelião, amargura ou ressentimento, prosseguimos nossa obra de formação sacerdotal à luz do magistério de sempre, convencidos de que não podemos prestar um maior serviço à Santa Igreja católica, ao Sumo Pontífice e às gerações futuras”.

É algo que vocês, queridos amigos e benfeitores da Fraternidade São Pio X, compreendem bem. Suas orações fervorosas, sua generosidade admirável e sua entrega constante são para nós um valioso apoio. Graças a vocês a obra de Dom Lefebvre cresce em todo o mundo. Agradeço-lhes de todo o coração.

Rogamos a Nossa Senhora para que lhes conceda todas as graças que necessitam. Pedimos a Deus que conceda suas bênçãos a vocês e a suas famílias para que se preparem à grande festa do Natal por meio de um santo Advento e para que encomendem o ano próximo, com suas alegrias e suas cruzes, à nossa Mãe do Céu.

Na festa da Apresentação da Santíssima Virgem, 21 de novembro de 2015

+ Bernard Fellay